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Blackswan.

 

Pela graça, ou desgraça, divina, Kyria Blackswan não possuía o dom da fala.
 

Totalmente muda desde seu nascimento sequer pôde reclamar por alimento quando, ainda em tenra idade, se encontrava faminta.

 

Mais irônico ainda parecia ser o fato de ela tudo poder ouvir, até mais que os pessoas normais, tão aguçada era sua audição. Talvez uma maldição.

 

Tudo ouvia, porém nada falava.

 

Ouvia os impropérios daqueles que zombavam de sua triste condição. Ouvia os risos de escárnio daqueles que a consideravam uma criatura bizarra. Ouvia os lamentos de seus pais por detrás das portas se queixando da condição da filha.

 

No início achava tudo engraçado, em sua condição infantil, porém a realidade cruel das palavras começou a fazer sentido conforme crescia.

 

Tudo ouvia e tudo compreendia, sem jamais pronunciar uma palavra sequer. Fosse de raiva, de angústia ou de perdão. Seu choro tinha lágrimas, mas não lamentos. Não era o suficiente para amenizar o sofrimento de sua alma.

 

Os anos se passaram e a menina cresceu praticamente reclusa em sua humilde casa na periferia da vila. Evitava o contato com as pessoas para não mais ser humilhada e ridicularizada.

 

Mal atingira a idade adulta e Kyria viu-se sozinha no mundo após a vida de seus pais ser ceifada em um trágico e suspeito acidente que as autoridades não se interessaram em investigar.

 

Muda, sozinha e desprezada. Assim era Kyria.

 

Procurando respostas capazes de apaziguar as dores de seu espírito ela ingressou no estudo das artes ocultas, que para a grande maioria eram sinistras e hereges.

 

Ela não se importava. Não encontrara as respostas nos livros ditos sagrados, procurara seu próprio caminho.

 

Ao contrário dos humanos, ela era capaz de se comunicar com os seres etéreos, através de seu pensamento. Ainda que bizarras, elas, as criaturas, lhe davam a atenção que tanto desejava.

 

Os anos se passaram e Kyria voltava para sua casa após uma rara e rápida visita à mercearia da vila quando ouviu aquela palavra pela primeira vez: “Bruxa”.

 

Uma velha senhora a chamara assim, e ela sequer entendia o motivo.

 

No entanto aquilo significava bem mais que um mero insulto, como tantos outros que já ouvira: era a Idade Média.

 

Kyria, em sua inocência, prosseguiu com seus rituais e contatos com as forças inferiores sem entender bem o perigo que aquilo lhe trazia. Eles a faziam menos triste e solitária, e só isso lhe importava.

 

Certa noite uma angústia jamais antes sentida se apoderou de seu coração. Lágrimas escorreram por sua face sem ela entender o motivo, como se sua alma deixasse transbordar todo o sofrimento nela represado por toda a vida. Seu coração batia apertado e a respiração era mais difícil.

 

As criaturas sorrateiras se compadeceram de sua condição e indagaram o motivo de tamanho sofrimento. Ela não sabia o motivo, somente chorava copiosamente. Arquitetando seu plano funesto, elas lhe indagaram sobre seu maior desejo, e obtiveram a resposta: ela desejava que, antes de morrer, pudesse falar tudo aquilo que sentia. Suas dores, medos, sonhos e anseios. Uma única vez, para que o mundo soubesse o que se passava dentro de seu íntimo.

 

Sem entender o significado daquilo tudo ela aceitou a oferta feita pelas criaturas malignas, uma oferta irrecusável: seu sonho se concretizaria.

 

Assim que consentiu com o acordo a frágil porta de madeira foi arrombada por homens raivosos empunhando tochas e proferindo os mais terríveis impropérios. Kyria teria seu sonho realizado antes do que imaginava.

 

Mas não, sua voz ainda não escapava por seus virgens lábios e os gritos de dor não passavam de sons agudos e desconexos. Dores provocadas pelos golpes que recebia tanto em seu corpo como em sua alma.

 

Em meios aos homens que a atacavam ela via os vultos daqueles que durante anos a acompanhavam noite adentro: os demônios. Por que eles não a ajudavam? Não, eles riam.

 

Kyria foi amarrada a um pesado móvel escuro de madeira e logo sua casa foi tomada pelas chamas das tochas lançadas por homens embriagados em sua insana fé.

 

Do lado de fora, assistindo ao tétrico espetáculo da casa se incendiando, homens e mulheres da vila riam acreditando cumprirem a vontade de Deus.

 

Logo as risadas cessaram. Após infindáveis segundos de silêncio lágrimas passaram a ser derramadas por todos os presentes.

 

Aos seus ouvidos chegava uma melancólica, e ao mesmo tempo bela, canção.

 

Entoada por uma voz feminina de rara afinação seus tons lhes atingiam a alma trazendo à tona sofrimentos que já acreditavam já há muito superados ou esquecidos.

 

Do interior da casa não se ouvia gritos de desespero e dor, mas a doce melodia contrastando com a caótica realidade.

 

Lentamente todos se afastaram e se recolheram às suas casas sem pronunciar sequer uma palavra, como em uma marcha fúnebre, deixando para trás a casa que era consumida por chamas ferozes.

 

Após algumas semanas alguns homens se aventuraram a visitar os escombros do que antes fora o lar dos Blackswan e para horror de todos a ossada da jovem muda taxada como bruxa não foi encontrada. Somente havia o que restara do móvel e das correntes com as quais ela fora impedida de fugir.

 

Há quem diga que o espírito da pobre moça ainda vague pelo local e que em noites de lua minguante ainda seja possível ouvir seu doce e perturbador canto, o lamento de sua alma, a voz de seu coração.

 

*Diz uma lenda que os cisnes negros são mudos durante toda sua vida, cantando somente quando há o prenúncio de sua morte.

 

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