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OSCAR MENDES FILHO
Trilha Sonora Disponível
A Aposta.
Assim que ela se fechou sozinha atrás de Manoel ele sabia que havia algo errado.
Mergulhado na escuridão e vendo-se incapaz de abrir a porta pela qual acabara de entrar naquela abandonada residência teve a certeza de que fazer a aposta com os amigos tinha sido uma péssima idéia.
-Cinqüenta reais como eu entro na velha casa à noite.
-Na casa do final da rua, a do velho Edgar? Duvido, tá apostado.
O pacto havia sido selado e ali estava ele, dentro da perturbadora casa que aterrorizara sua turma desde a infância.
Ele não sabia dizer o que mais o enchia de pavor, se era a quase total escuridão na qual estava mergulhado ou o absoluto silêncio que preenchia seus ouvidos.
Seus amigos deveriam estar gritando por ajuda e tentando, a pontapés, arrombar a porta que permitiria sua saída, mas ele nada ouvia como se ao adentrar aquele lugar tivesse passado para outra dimensão.
Desistindo de abrir a porta ele forçou a visão na ânsia de encontrar outra forma de sair dali, tentando vencer a ausência de luz que só lhe permitia ver os vultos de móveis ali há muito esquecidos.
Manoel desferiu mais dois chutes na porta de madeira, que se mostrava incrivelmente resistente apesar da idade que aparentava possuir, e desistiu percebendo que por ali não ganharia a liberdade.
O silêncio, a escuridão, o desconhecido, as inúmeras histórias que ouvira desde criança, contadas pelos mais velhos, a respeito daquele lugar. Seu estômago começou a revirar e seus olhos se encheram de lágrimas.
Poderia ficar ali, estático, aguardando a chegada de ajuda e evitando chamar a atenção de qualquer perigo que estivesse escondido nos cômodos do local, mas ela viria? Não fazia muito tempo que ele estava ali e mesmo assim cada segundo parecia uma angustiante eternidade.
Não, ele não ficaria ali parado, procuraria uma saída.
Iniciou sua jornada com passos vacilantes que faziam o piso de madeira ranger. Procurou amaciar os passos, mas por mais que o fizesse o irritante som denunciava sua presença. Piso de madeira velha, ele desejava que fosse resistente assim como a porta que impedia sua saída, para que não caísse em algum buraco, complicando ainda mais sua situação.
Como um náufrago que encontra seu porto seguro ele foi até uma janela do outro lado do relativamente grande cômodo, mas antes caiu ao tropeçar em alguma coisa no chão, escondida na ausência da luz.
Praguejou. Contra aquilo que o fizera cair e machucar os cotovelos e contra si mesmo por ter feito aquela aposta idiota, mas engoliu seco e se calou ao lembrar-se de que a situação poderia se agravar ainda mais caso acordasse os habitantes das trevas.
Novamente olhou na direção da porta por onde entrara. Não havia sinal da chegada de ajuda ou dos amigos que haviam ficado do lado de fora.
Levantou-se rápido como um raio e finalmente alcançou a janela. Trancada. Esmurrou-as, mas elas sequer rangeram. Lágrimas deslizaram por seu rosto.
Olhou pelas frestas da mesma e o que conseguiu ver o deixou ainda mais perturbado. Ela dava para o quintal dos fundos da antiga casa, repleto de árvores secas e retorcidas como se fosse um cenário de filmes de horror.
Cautelosamente, temendo deparar-se com algo diabólico, ele se virou e mais uma vez procurou na escuridão outro caminho para ganhar a liberdade, mas conseguiu identificar somente uma passagem que parecia levar a um corredor ainda mais escuro do que o local em que já estava.
O que fazer? Pensou na possibilidade de ficar imóvel, congelado, esperando que seus pais, a polícia, os bombeiros, a guarda nacional ou o padeiro da esquina o tirassem dali. Mas o silêncio era absoluto. Ninguém viria socorrê-lo, jamais o encontrariam.
Incapaz de conter o estômago que revirava ele então vomitou, impregnando o poeirento ar com o fétido odor azedo de seu conteúdo estomacal. Ao sentir esse cheiro vomitou mais uma vez, e vomitou mais e mais, até seu estômago estar completamente vazio. Risadas.
Sim, rompendo o torturante silêncio ele ouviu risadas com um tom infantil. Crianças, ali? Um frio percorreu sua espinha e tomado pelo pavor ele cruzou o amplo cômodo como um velocista e se atirou contra a porta pela qual entrara. Com o impacto ganhou o chão e o estrondo provocado ecoou por todo o lugar. Novamente as risadas.
- Quem está aí? Me deixe sair!! Por favor! – ele esbravejou com a voz chorosa enquanto se levantava.
Se havia algo maligno naquela casa a essa altura já estava desperto com todo o barulho que provocara, se já não o estivesse assim que entrara, e ele correu para a passagem que dava para o corredor escuro sem importar-se com o estrondo que seus passos causavam no assoalho.
- Que se dane. – ele balbuciou tomado de inacreditável coragem.
Mergulhou definitivamente na escuridão e se antes seus olhos permitiam-lhe ver somente vultos, agora não via mais nada. Tateou as paredes procurando outra saída e constatou que aquele corredor era estreito e úmido. Havia de existir uma saída em algum lugar e seu único pensamento era o de sair daquele lugar maldito. Ele não se importava mais se acordaria algum fantasma ou o próprio satã, ele só queria sair dali e mandar o amigo enfiar os cinqüenta reais naquele lugar, embora tivesse ganhado a aposta.
“...ela serviu como abrigo para crianças abandonadas durante muitos anos até que um dia o velho Edgar enlouqueceu e matou todas elas com uma enxada. A cidade ficou horrorizada e por mais que as autoridades o procurassem, jamais o assassino foi encontrado.”
Tateando as paredes cuja umidade melava suas mãos machucadas pelas quedas, ele finalmente encontrou uma passagem e, sem pestanejar, Manoel adentrou por ela e se deparou com outro cômodo.
Tão escuro quanto o corredor, pareceu haverem pequenas camas dispostas próximas as paredes, mas do outro lado ele percebeu uma tênue luminosidade: outra janela.
Cruzou o cômodo e a esmurrou, em vão. Ela, assim como a outra, não cedeu.
Manoel, parecendo desistir da própria vida, jogou-se no imundo assoalho e se entregou ao desespero. Não havia saída daquele lugar, o que mais ele podia fazer?
Cerrou os olhos e passou a orar. Recordou-se das aulas de catecismo que recebera ainda na infância e que jamais lhe haviam sido úteis.
Orou e orou até não poder mais e finalmente abriu os olhos cansados.
Seu sangue gelou ao perceber pequenos olhos, inúmeros pares, com tom avermelhado circundando o cômodo escuro. Pela estatura pareciam ser crianças, as que haviam sido assassinadas, e aqueles olhos que transbordavam rancor o observavam impassíveis, indiferentes ao seu desespero.
Manoel chorou como nunca o fizera antes, nem mesmo com a morte de seu pai, e suplicou.
- Por favor, me deixem sair daqui, pelo amor de Deus!
Novamente as risadas infantis puderam ser ouvidas, e na seqüência a resposta aos seus apelos.
- Tio Edgar não deixa ninguém sair daqui. Nós nunca pudemos sair, ninguém que entrou aqui pôde.
Um nó impediu que o rapaz dissesse alguma coisa e os pequenos olhos avermelhados rapidamente se dirigiram para a saída que levava para o corredor pelo qual chegara até ali. Por quê? Manoel não sabia se sentia alívio ou desespero por ter sido abandonado por aqueles olhos.
O forte ranger do assoalho indicava o motivo para a abrupta saída dos pequeninos: era Edgar que estava chegando...